Marielle Franco, potencialmente vítima do Estado – Não há poder paralelo, insiste sociólogo carioca
No primeiro capítulo da série Violência e Política de You Agency Press (YAP), vamos examinar como, a partir dos primeiros esquadrões da morte, arregimentados por ricos comerciantes e empresários locais, e cujos membros tinham origem nas forças de polícia do estado do Rio de Janeiro, se chegou à criminalidade que, para alguns, pode ser vista como uma outra expressão da vontade política do Estado “cão de guarda” das elites econômicas e dirigentes.
Quem nos conta como isso foi possível é o sociólogo e professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) José Cláudio Souza Alves. Autor do livro “Dos Barões aos Esquadrões” – obra que é uma referência no Estudo da Violência política da Baixada Fluminense – ele acredita que o Estado está por trás do que é legal e também do que é ilegal.
O Estado, neste sentido, interpretado a partir do pensamento de Souza Alves, é, por assim dizer, o chefe do crime organizado no Brasil.
Retorno a Duque de Caxias, ao parlamentarismo e aos anos sessenta:
Marielle Franco (Psol-RJ), socióloga feminista, militante de direitos humanos e favelada oriunda do complexo de favelas da Maré é um exemplo quase único de meritocracia republicana.
Na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), onde ela obteve os graus de bacharel e de mestre em sociologia, a ex-aluna era vista como a encarnação da determinação. Jovem mãe, trabalhadora em dois turnos e estudante à noite.
Por ter uma filha para criar, o envolvimento com a política veio mais tarde – em 2006, junto à campanha do então candidato à deputado estadual Marcelo Freixo (Psol-RJ).
Dez anos depois, eleita como a quinta vereadora mais votada do Rio de Janeiro, Franco, desde o início do mandato, se engajou, através da comissão de Direitos Humanos da Câmara Municipal do Rio de Janeiro, na denúncia de abusos policiais contra os moradores e bairros carentes da capital carioca. Como parlamentar, ela também se preocupava com a condição sócio-profissional dos trabalhadores da segurança pública carioca – uma atuação distante do rótulo de “amiga de bandido” que seus inimigos ideológicos costumavam lhe atribuir.
Mas, como se sabe, desde a CPI Fluminense das Milícias, instalada pela Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj) em 2008, se opor à intimidação policial é uma atividade de risco – de morte. Isso porquê o miliciano, muitas vezes e quase por definição, é um agente da lei.
Marielle Franco não se resumia apenas à luta pelo respeito dos direitos humanos e pelo direito à segurança no Rio de Janeiro. Como mulher, como negra, como lésbica e como favelada, a jovem parlamentar militava pela alforria geral dos grupos marginalizados da sociedade, de ontem bem como de hoje.
Esta desigualdade estruturante do país, como busca demonstrar o professor José Claudio, seria criada e mantida pelo Estado na defesa dos interesses econômicos das elites nacional, regional e locais. Esta é a tese mais profunda que este especialista da violência – neste caso política – na Baixada Fluminense defende, não apenas mas também, no livro Dos Barões ao Extermínio. A obra retraça a atuação de agentes do Estado, arregimentados por empresários e comerciantes, na formação do crime organizado fluminense e carioca.
Dos Grupos de Extermínio à Milícia
Será objeto de um artigo mais aprofundado, mas, resumidamente, Souza Alves demonstras em Dos Barões ao Extermínio como se deu a passagem do coronelismo colonial e da primeira república em uma Baixada Fluminense agrária aos grupos de justiceiros aliciados por comerciantes e empresários, nos anos 60, quando à conjunção de racionamento de víveres e do descontentamento sindical com a escolha do primeiro ministro indicado por João Goulart foi o estopim de uma onda de saques que tomou os municípios do noroeste do estado.
A violência que irrompeu só foi contida na fronteira entre Duque de Caxias e o Bairro de Vigário Geral quando tropas enviadas por Carlos Lacerda deram enfrentamento aos insurretos. Antes da intervenção policial, jovens da ‘Turma do Esculacho’ grupo de jovens de classe média-alta e Udenistas ou “playboys” como os caracterizou o sociólogo durante nossa conversa por telefone, armados, atiraram contra a massa que pilhava o comércio local causando mortes de lado à lado.
O episódio esta na origem dos primeiros grupos de extermínio para “resolver os diversos problemas” que, como explica José Cláudio Souza Alves, esta pequena burguesia fluminense se estimava no direito de solucionar sem o controle do Estado mesmo que através de agentes da lei agindo à soldo privado.
O autor, solicitado pela mídia regional e nacional – e sempre disponível – se alonga por minutos e horas, através das ondas de radio e TV ou em linhas de artigos de jornais, revistas e blogs, com o objetivo de debater e convencer a audiência de que a violência no estado do Rio de Janeiro é fruto do Estado brasileiro.
Sem medo de fórmulas de impacto, com grande potencial de gerar polêmica, o pensador da violência da Baixada diz coisas assim: “O Estado é o grande fiador [dos projetos econômicos] das elites”. Para ele a dita “ausência do Estado é uma presença”, propõem.
Oficialmente e por meio de eleitos, que podem estar por trás de esquadrões e grupos de extermínio, milícias mafiosas e outras organizações – todas compostas, inteiramente ou majoritariamente, de agentes ou ex-agentes da lei egressos das polícias Militar e Civil – em busca de controle territorial e eleitoral.
Isto implica que o gozo pleno e a ampliação dos direitos daqueles por quem Marielle se interessava colocaria, potencialmente, em risco um sistema que movimenta milhões em verbas legais, clandestinas e criminosas ou oriundas da corrupção. Seria uma malha “com varias pontas”, explica o sociólogo.
O sistema, diz o estudioso, “interliga várias lógicas de funcionamento onde o tráfico de drogas, tráfico de armas, roubo de cargas, roubo a transeunte, sequestro, tudo isso, além do que é operado pela milícia, com venda de aterro, venda de água, venda de “GatoNet”, transporte clandestino… o tamanho disso é monstruoso”, descreve.
Intimidação Eleitoral
Muito resta à ser dito, igualmente, sobre a intimidação exercida sobre os eleitores em territórios controlados pelas ditas milícias. Desde os idos dos anos dois mil, esta organização criminosa, tem buscado nas urnas uma outra forma de infiltração no aparato do Estado; com o objetivo de proteger legalmente as diferentes formas de domínio do comércio ilegal de bens e serviços que operam bem como o de prevenir a ação das autoridades locais e regionais à cargo de investigar e coibir as ilegalidades cometidas por estes grupos e toleradas – e até mesmo desejadas – pela Estado.
Já tendo alcançado mandatos nos parlamentos municipal e estadual no Rio de Janeiro – e mesmo perdido pela via judicial graças, entre outras, à primeira CPI das Milícias instaurada pela Alerj em 2008 – eles utilizam da violência extrema como forma de “lembrar” os eleitores em qual candidato eles têm interesse de votar.
Desta forma, mesmo candidatos aprisionados preventivamente pela Justiça, puderam ser eleitos à diferentes vagas parlamentares. YAP também se aterá de forma mais detalhada a mais esta conseqüência da ação destes bandos mafiosos na vida política carioca.
Tudo isso, com o advento das milícias, gera uma disputa pela estrutura do controle político territorial do crime organizado no Rio de Janeiro, segundo Souza Alves. E mesmo sem saber, ao pisar em uma destas pontas, a eleita teria assinado seu decreto de morte, especula o autor.
Como exemplo, o universitário – que não teme à pesquisa de campo – cita o caso das mães de Acari. As mães das nove vítimas menores de um desaparecimento ocorrido em 26 de julho de 1990 e que ficou conhecido como a chacina de Acari, formaram um movimento de protesto, com a ajuda de ativistas em favor dos direitos humanos, políticos regionais e nacionais e ONGs. Elas cobravam das autoridades uma resolução célere do caso que as privara dos filhos e até mesmo dos cadáveres – que até hoje não foram velados.
Anos mais tarde, a principal líder do movimento também foi assassinada quando se acreditava que ela teria obtido informações que poderiam ter levado à localização dos cadáveres e ao esclarecimento deste crime.
Em entrevista realizada pelo pesquisador, anos depois dos fatos, com a promotora de Justiça responsável pelo caso, Tânia Maria Salles Moreira, hoje também falecida, ela lamentava não ter podido avançar no caso, como recorda José Cláudio. Isso porquê, ensina o professor, a chacina dos jovens de Acari teria ocorrido em razão de uma desavença entre uma das vítimas que estava envolvida com o roubo de cargas nos entornos da Ceasa (principal mercado de distribuição de alimentos frescos ao varejo no Rio de Janeiro) e os comandantes desta ação criminosa.
“O que acontece é que o grupo que operava o roubo de cargas no Ceasa era o chamado grupo dos ‘Cavalos Corredores’ “, revela. Este esquadrão da morte era notoriamente formado por policiais militares do 41º BPM – por coincidência, o mesmo batalhão que fora objeto de repetidas denúncias feitas por Marielle Franco nos últimos meses de vida.
Mas a consequência macabra desta dificuldade de chegar ao cabo do inquérito se manifestaria mais tarde, em 1993.
Se eu tivesse avançado na investigação”, teria dito Salles Moreira, “eu teria chegado ao grupo dos ‘Cavalos Corredores’ e eu teria impedido a chacina de Vigário Geral”, relembra. A chacina de Vigário Geral, que deixou 21 mortos, também é atribuída aos policiais membros dos “Cavalos Corredores”.
“Isso mostra para você a interligação de vários pontos”, reforça Souza Alves. Ou seja, por complexa, esta rede pode ter sido atingida de uma ou mais maneiras pela atuação de Marielle.
Isto seria, também, a demonstração da existência de um Estado Paralelo? Para José Claudio de Souza Alves “não há ausência do Estado”, insiste. O que haveria seria um imbricamento entre defesa de interesses privados por agentes do estado e outros aliados, que, em troca, operariam atividades criminosas ou explorariam serviços públicos para populações carentes em favor de quem o Estado não se sente motivado à atender.
Na segunda parte desta reportagem, as varias faces da violência política, no Rio e em outras regiões do País.