Para Airton Michels “não se pode doar 14 milhões para o Estado e dizer assim: eu não quero que o meu nome apareça”
Como parte de nossa cobertura especial da violência política no Brasil, You Agency Press (YAP) conversou, por uma hora e meia, com o ex-secretário da Segurança do Rio Grande do Sul durante o a administração de Tarso Genro (PT), Airton Michels.
Homem de esquerda, que, por razão de antiguidade na carreira de procurador, sempre pode assumir suas posições ideológicas — por raras, causam espécie entre os membros do Ministério Público do Rio Grande do Sul (MP). No entanto, ainda que seja militante assumido, Michels não se aparta do conhecimento técnico na área de segurança quando o assunto é criminalidade, muito embora ele tempere o índice frio da estatística com uma leitura mais global do fenômeno da criminalidade.
Em breve, YAP deve restituir e contextualizar amplamente esta discussão franca que tivemos com o ex-secretário, agora de volta ao gabinete que ocupa no moderno edifício que abriga o MP gaúcho. Até lá, decidimos destacar um dos temas que foi levantado e que se relaciona diretamente com o fenômeno das milícias: o papel do empresariado local na gestão da segurança pública.
O ex-chefe das polícias gaúchas, em passagem da entrevista que abordou um largo espectro de assuntos, questionou como e o porquê da doação da milionária soma de 14 milhões de reais, ocorrida no final do mês de março deste ano por iniciativa do Grupo Cultural Floresta. Valor é destinado à compra de 46 veículos Mitsubishi Pajero, 10 fuzis T4, 200 rastreadores e 26 rádios digitais para o reaparelhamento das Forças de Segurança do Rio Grande do Sul.
De fato, diferentemente do fenômeno dos grupos de extermínio fluminenses — que empresários e comerciantes, desde a década de sessenta, arregimentam e financiam policiais para que estes agentes da lei busquem e assassinem supostos delinquentes que importunariam o comercio local — os patrícios gaúchos preferiram “passar o chapéu” entre si e ajudar o governo Ivo Sartori (MDB) a reequipar a frota afeta aos agentes da lei.
Os esquadrões da morte do Rio de Janeiro, de acordo com todos os especialistas consultados por YAP, estão na origem da formação das primeiras milícias que dominam hoje o crime organizado em um amplo território do estado dirigido por Luiz Fernando Pezão (MDB).
O detalhe que chama a atenção, desde o início, é o caráter anônimo dos filantropos envolvidos nesta obra de caridade. Isso porque, como salientou o próprio presidente deste novo instituto, Leonardo Fração, as 30 famílias e as 25 empresas que participaram da iniciativa buscam o anonimato para não “publicitar”, disse ele, este ato de bondade.
“Eu até estou muito curioso… porque, até aonde eu saiba, tu não podes doar 14 milhões para o Estado e dizer assim: eu não quero que o meu nome apareça”, questiona Michels. No entanto, a discrição do gesto, ao invés de suscitar admiração, interpela o procurador do Estado.
“A doação é um contrato, e a Constituição exige transparência”, ensina o ex-gestor. Segundo Airton Michels, de acordo com a experiência que foi a dele, a classe de dirigentes empresariais não costuma se envolver em iniciativas deste tipo — sem retribuição.
Como prova, ele nos conta o que teria vivido, enquanto secretário da segurança, quando em contato com pessoas ligadas ao mundo dos negócios. “Eu tive uma experiência, com um empresário importante que me procurou. [Na época] nós tínhamos os territórios de paz, quatro aqui em Porto Alegre… pra fazer uma aproximação entre a polícia e a comunidade. Ele [o empresário] me disse que queria doar um milhão. Ele me disse ‘Ô Michels! este teu projeto nós precisamos ajudar… um milhão de reais para começar’, me disse ele.” relembra
“Numa nova reunião, ele já chegou me dizendo ‘Michels! Eu represento uma consultoria. E queria ver se tu tens interesse em contratar esta consultoria para a gestão e tal…” O ex-superintendente dos sistemas carcerais estadual e nacional, ao receber esta oferta de “contra partida”, exclamou: “primeiro lugar, eu acho que gestor público que contrata consultoria tem que entregar o boné”, estima Michels.
“E o preço da consultoria era três milhões”, revela o procurador. “Então”, diz em referencia à boa ação do Grupo Cultural Floresta, “me parece muito estranho”, decreta liminarmente.
As dúvidas sobre identidade dos doadores podem ser vistas como pertinente posto que, de acordo com as próprias páginas institucionais da ONG pela Internet e redes sociais, nos explica que, in fine, o que buscam é a aprovação de uma lei que estimularia, segundo o grupo, a doação de recursos à segurança pública em troca de isenção fiscal — no caso, de ICMS.
Além disso, o fato de a doação se destinar à compra de equipamentos e veículos de grande monta, o anonimato poderia ajudar a encobrir uma lista onde empresários seriam doadores e fornecedores ao mesmo tempo. Um problema ético e legal que, como explicou Airton Michels, necessita da transparência exigida pela Constituição para dirimir qualquer suspeita de tráfico de influência que possa existir.
Mais sobre este e outros assuntos nas próximas reportagens da série Violência Política, Sangue e Castigo, exclusiva aqui na YAP! Acompanhe, curta e compartilhe nosso trabalho!