Tolerância zero contra o crime – uma paixão francesa, um pensamento quase único da classe política

Manifestação contra Jean-Marie Le Pen em abril de 2002

A França não é a Suíça no que diz respeito à segurança pública. No entanto, os números conhecidos sobre este tema demonstram uma longa tendência de queda da criminalidade neste país que tem vivido sob a constante ameaça do terrorismo desde o surgimento do Estado Islâmico no Crescente Fértil. 

Um risco que os atentados mortíferos de janeiro, novembro de 2015 e em julho de 2016 são à triste prova da iminência. O Estado, desde de então, como You Agency Press (YAP) havia reportado no início no mês, se dotou de um arsenal ainda mais rígido no combate ao terrorismo. Três leis foram votadas e se juntaram às inúmeras leis de reforma do direito penal e processual suscitados pela atualidade trepidante da crônica criminal nos últimos 30 anos.

Mas se o perigo terrorista cobrou a vida de centenas, no que diz respeito a violência estritamente criminal, a França homicida produz menos mortes à cada ano que passa, com raras exceções, no mesmo período. Da mesmo forma, à maior parte dos crimes de grande potencial ofensivo diminui constantemente.

Então, como diz Laurence Blisson, secretária geral do Sindicato da Magistratura, de que maneira a “ideologia da tolerância zero” no combate ao crime se tornou onipresente ao ponto que, da centro esquerda à extrema direita, ninguém parece se opor à uma acumulação de reformas penais que limitam às liberdades individuais em nome da repressão contra os criminosos e em detrimento de soluções que envolvam o combate às causas sociais da criminalidade? Retorno à 2002 e à surpreendente campanha presidencial que teria representado a vitoria de uma certa visão da segurança pública:

A nova lei antiterrorista, que esta em vigor desde o inicio do mês, segundo o principal jornal eletrônico do pais, Mediapart, é destinada a manter a França em um “estado de urgência permanente”. A descrição desta publicação online de esquerda pode ser vista como provocativa, no entanto, como You Agency Press (YAP) já havia noticiado anteriormente, muitos são aqueles que pensam que a legislação aprovada pelo Parlamento “reduziu garantias fundamentais” e deu poderes “exorbitantes” às autoridades administrativas em detrimento da autoridade judiciaria.

Também no inicio do mês, YAP lembrava como os dois anos de estado de urgência levaram à três novas leis na área da segurança publica e da luta contra o terrorismo que se inscreviam em uma tendência repressiva do legislador que a secretaria geral do Sindicato da Magistratura, Laurence Blisson, chama de “ideologia da tolerância zero”.

Nos últimos 20 anos, como ja havíamos mencionado, a França aprovou uma nova lei de combate à criminalidade por ano em média. Este movimento em direção de reformas repressivas deu ao país um dos mais rígidos arsenais legislativos, entre os países da União Européia (UE), na luta contra a violência cotidiana bem como contra a ameaça terrorista insurgente desde o advento do Estado Islâmico (EI).

Esta leis foram propostas, seguidamente, em reação à atualidade criminal ou geopolítica e, como declarou à reportagem de YAP o criminalista Aurélien Langlade,  estas mudanças foram operadas sem grande estudo que avaliasse a eficácia das medidas anteriormente adicionadas à lei penal. No entanto, como mostram as estatísticas oficiais, a criminalidade não cessa de diminuir em nível nacional, com problemas pontuais em determinados bairros e regiões. Ou seja, do ponto de vista estatístico, como lembra Langlade, a França esta “pacificada” como nunca antes na historia da nação.

Como prova, Langlade lembra que, entre 1997 e 2014, o número de homicidios por ano na França teve uma queda de 37%. Não somente este crime é menos comum no seio da sociedade – o que em criminologia seria um indicativo de maior paz social – mas as penas pronunciadas são cada vez mais longas.

Uma análise realizada pelo Observatório Nacional da Delinqüência e da Resposta Penal (ONDRP), de fato, demonstrou que houve uma inversão da proporção de penas pronunciadas, com relação à duração, por crimes de homicídio nos últimos trinta anos. Em 1984, por exemplo, mais da metade das condenações decretadas correspondiam à penas de no máximo dez anos de prisão fechada ao passo que apenas 34% delas variavam entre dez e vinte anos de encarceração.

Em 2012, estes índices praticamente se inverteram –  com um crescimento pronunciado das penas que vão de vinte anos à perpétua, que eram 8% do total em 1984 mas que correspondiam à 20% há cinco anos.

Além do mais, os dados levantados pelo ONDPR, onde trabalha Aurélien Langlade, dão conta de um alto índice de elucidação do crime capital em torno dos 85%. Um número que demonstra que a punição, neste caso de crime de morte, é quase certa. O que, segundo o pesquisador, é um fator de prevenção da violência homicida, em particular, e da criminalidade de uma maneira geral.

No entanto, o sentimento de insegurança de um certo eleitorado periférico e rural não cessa de crescer e se ver alimentado por políticos de direita e de extrema direita que vêem na temática da insegurança percebida uma plataforma vencedora na busca de ganhos eleitorais. De Charles Pasquas à Manuels Valls passando pelo ex-prefeito de Lyon Gérard Collomb, políticos que ocuparam ou ocupam o posto de primeiro policial da França (ministro do Interior) são frequentemente associados à um discurso martial quando se trata de política criminal.

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Em especial, o binômio imigração e delinqüência, como lembrou o sociólogo da criminalidade Laurent Mucchielli, da Universidade Pública de Aix-en-Provence, cidade localizada entre Lyon e Marseille, à reportagem de YAP, se impôs no debate público graças ao desemprego galopante produzido pelo fim do período conhecido como dos “30 Gloriosos” em que a França conheceu o pleno emprego.

O aumento exponencial do desemprego, o fim da busca de soluções vistas como genuinamente de esquerda ao final de dois anos de presidência Mitterand – o que causou grande desilusão no seio do eleitorado popular que ajudou a colocar a esquerda no poder – teriam levado, segundo Mucchielli, uma parte destes cidadãos à dar ouvidos ao discurso autoritário e rígido contra o crime do Front National (FN) de Jean-Marie Le Pen.

Além deste primeiro fervor nacionalista, sob fundo de medo da violência – segundo os argumentos dos extremistas causada por migrantes, principalmente, mas não exclusivamente – o primeiro arroxo fiscal e orçamentario produzido pela esquerda francesa no poder teria criado, defende Mucchielli, “um contexto de fim do antagonismo comunismo contra capitalismo… a deterioração desta referência [ideológica] e a gradual substituição desta dicotomia pela confrontação entre o Ocidente e o Islam, que hoje [a presença no debate público] é uma evidência, mas que na época já se via as premissas [da tentativa de instalar a discussão na sociedade]”.

A maior audiência das teses de tolerância zero produziu, segundo o pesquisador, um efeito de deslocamento do tabuleiro político francês em direção de propostas cada vez mais repressivas contra uma criminalidade global, paradoxalmente em queda, mas com picos localizados de incivilidade e de crimes contra o patrimônio que, segundo Laurent Mucchielli, são uma conseqüência natural do desemprego de massa.

Alias, sobre este ponto específico, Laurent Languade lembra que o recente estudo comparativo do crime de homicidio na Europa, realizado pelo ONDRP, demosntraria que, a desiguadade social, de fato, é geradora de criminalidade – em especial de tráfico de droga e de crimes contra o patrimônio – em resposta à imobilidade sócio-econômica prevalente em comunidades infelicitadas pela pobreza crônica.

Este fenômeno pontual, ensina Mucchielli, independentemente da proporção e da tendência de queda, causam grande angustia às pessoas concernidas.

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Estas teses se impuseram, primeiro à direita, em competição cada vez mais acirrada, nos anos oitenta, contra à extrema direita unificada em torno FN. No entanto, entre o final dos anos noventa e inicio dos anos dois mil, o medo de ser visto como condescendente com a criminalidade levou à esquerda dirigida por Lionel Jospin, primeiro ministro de co-habitação sob a presidência de direita de Jacques Chirac, à se confessar “ingênuo” quanto aos meios de combater à violência. Em um período de baixo nível de desemprego, o premier, em entrevista ao principal tele-jornal do país, declarou que a diminuição do desemprego, como ele acreditara no passado, não tinha incidência sobre o nível de violência na sociedade.

Inobstânte o fato de que Jospin, à época, não dispunha de nenhum estudo especifico que o permitisse de negar à correlação entre desigualdade social e índices de criminalidade, para Laurent Mucchielli, ao contrário, o candidato da esquerda socialista poderia se vangloriar com mais vigor “de um balanço respeitável” no que concerne a ação de governo em segurança pública. “Em particular, a tentativa de reforma das policias com a introdução do conceito de policia comunitária” salienta, como um ponto positivo, o sociólogo.

Este reconhecimento – gratuito para Mucchielli – de um certo nível de inocência no combate ao crime da parte do chefe do governo foi coroado com dois casos de violência fora do comum, e que contaram com um eco midiático igualmente extraordinário, uma seqüência iniciada há um mês da eleição presidencial de 2002 e que focalizou e bloqueou o debate político em torno da luta contra a violência.

A persistência do tema durante a reta final da campanha, para muitos, teria levado ao resultado que chacoalhou o pais: A esquerda eliminada de um segundo turno em que a vitoria lhe era prometida em favor da candidatura de extrema direita de Jean-Marie Le Pen, que, com ou sem razões estatísticas, sempre denunciou a complacência dos diferentes governos na batalha contra à criminalidade.

Enquanto isso, Le Pen, com escárnio e de maneira profética, declarou ao Le Monde, à época, que à atualidade lhe dava razão e que o discurso implacável contra os criminosos proferidos pelos dois principais candidatos e outros desafiantes seria visto como uma forma de plágio, e que o eleitor irai “preferir o original à cópia”.

Laurent Mucchielli concorda com o líder extremista, recentemente ostracizado pela direção do partido que fundou e dirigiu por três décadas.

“Há toda uma seqüência midiático-política, na qual se constata que, o discurso direita e esquerda se aproximam um do outro… e, à partir do momento, em que as pessoas, mesmo se há diferenças de grau, começam à dizer a mesma coisa, há difundir a mesma mensagens em duas versões, uma dura e outra suave… nesse momento, se não há mais uma contradição fundamental, não há mais a necessidade de debate. O que sobra é uma corrida em busca da indignação”. E, neste caso, estima o sociólogo, “os reis da indignação” que seriam os meios de comunicação se investem do debate em torno da segurança publica e da violência devido ao caráter sensacional da crônica policial.

Mucchielli ainda identifica diversos marcos que, para ele, teriam conduzido a opinião pública em direção às teses repressivas contra o crime. A primeira polêmica em torno do uso do véu islâmico na escola, as revoltas de jovens de bairros populares de Lyon em 1990 e a guerra do golfo de 1991, por razões diferentes, segundo o pesquisador, criaram um campo lexical que alimentara “o medo da periferia”.

“Através de certas palavras, representações, imagens e fantasias… de imaginários de medo, certamente, e que atravessam à sociedade indo bem além das dicotomias ideológicas habituais”, sustenta.

Ao final, explica Mucchielli, a opinião publica estava mais aberta do que nunca à argumentos emocionais difundidos em profusão pela mídia local e nacional nestes anos de escalada retórica em direção de um maior rigor contra a criminalidade.

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Os meses que antecederam o primeiro turno da eleição presidencial francesa de 2002, relembra Laurent Mucchielli, teriam se dado sob um pano de fundo de instigação do medo e onde as elites governantes se dirigiriam ao eleitorado de maneiram mais ou menos homogênea no que diz respeito ao diagnóstico e as soluções para combater a violência; o que teria gerado, segundo ele, um debate emocional que teria sido teatralizado ao extremo pelo meio ambiente midiático dominante.

Alias, um estudo realizado à época à pedido do jornal Le Monde pelo instituto TNS Média Intelligence mostrou que, de janeiro à maio de 2002 (período pré-eleitoral), a imprensa francesa – todos os meios de comunicação incluídos – produziu uma média de quase mil reportagens ligadas a criminalidade por semana. Um número que, por si só, conforta a memória que têm o sociólogo deste período.

Em especial, um primeiro aumento violento do nível de tratamento do assunto se deu entre fevereiro e abril do mesmo anos. O estudo realizado junto à 65 veículos de comunicação constatou uma acumulação de reportagens de policia, fazendo à crônica de crimes ordinários por uns, sensacionais por outros, culminando, com o assassinato de massa praticado ao final de uma sessão da Câmara de Vereadores de Nanterre, no início da madrugada de 27 de março.

Banhada neste mar de informações sobre a realidade da violência na sociedade, a opinião pública francesa, à partir de Nanterre, foi exposta, por mais de dez dias seguidos, de cobertura da primeira chacina por arma à fogo na historia moderna do país.

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O inicio da madruga já se alinhava no horizonte, quando, à uma hora passada, a sessão de discussão do orçamento municipal é declarada encerada pela prefeita comunista Jacqueline Fraysse que dirige os trabalhos da Câmara de Vereadores. Na plateia, um homem se levanta e, armado de pistolas automáticas, atira contra os parlamentares.

Richard Durn, militante ecologista conhecido neste município à dois passos de Paris, dispara primeiro contra os vereadores do Partido Verde (PV). Em seguida, por vários minutos, relembram as testemunhas logo após o ataque, ele atira de maneira indiscriminado contra os vereadores e secretários municiais presentes no plenário.

Ele é contido pelo público, em seguida à uma intervenção heróica do secretario municipal do Esporte, o comunista René Armant.

Entregue às autoridades, este desequilibrado produziu oito mortos entre os eleitos presentes e 19 feridos. No dia seguinte, Durn se atira do quarto andar do palácio de justiça de Paris onde era ouvido pelos policias da brigada criminal.

Ao saltar no vazio em direção à morte, o autor da chacina levou consigo segredos que poderiam explicar as razões do ato. O erro policial na origem do suicídio de Richard Durn forneceu a desculpa que buscavam os candidatos à presidencial para focaliza ainda mais as discussões em torno do tema da segurança publica.

Os dedos em riste dos principais concorrentes ao Élysée foram apontado contra o governo Jospin. O final da trégua fúnebre abriu um período de escalada em direção da proposta mais draconiana ou do discurso mais determinado contra o crime.

A encenação da violência através da lupa da crônica penal transformou a campanha em uma experiência emocional que teve como ponto alto o caso da agressão contra o septuagenário Paul Voise, à dois dias do primeiro turno, quando a imprensa francesa é obrigada a respeitar um embargo contra temas de política eleitoral.

Paul Voise e seu rosto coberto pelas chagas da violência que sofrera nas mãos de agressores jovens e de origem supostamente imigrante vai saturar as ondas por dois dias durante os quais os franceses se preparam para votar.

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Na próxima reportagem da série sobre a política de segurança pública na França YAP vai explorar estes eventos que marcaram a reta final da campanha de 2002 e selaram de vez o destino e a direção da do debate público em torno dos temas de polícia e justiça no pais.

 

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