Calais parte 2 – treze migrantes feridos em rixa intra-étnica, 4 correm risco de morte

Centro da cidade de Calais/©YAP

“Nós encontramos raramente as verdadeiras razões, sabe? Ou é uma soma de razões. Quando eles se sentem pressionados, não precisa grande coisa para que a situação exploda. É muito sensível. Basta que eles tenham perdido tudo na noite anterior.”, explicava-me, quando da visita de You Agency Press (YAP) à Calais, Hubert Witwicki, um um voluntário da ONG Salam, que distribui refeições à migrantes vivendo nas ruas e bosques da periferia desta cidade portuária e que estão em busca de uma maneira de atravessar o Canal da Mancha e ganhar o solo da vizinha Inglaterra. 

Nesta quinta-feira, quando por volta das 16 horas, uma rixa opondo eritreus e afegãos deixou treze feridos, sendo 4 em estado grave, a frase de Witwicki ganhou mais relevância devido à acuidade da análise oferecida pelo filantropo. 

Como a segunda reportagem especial de YAP, com foco na situação da imigração em Calais, mostrará – a atualidade nos obrigou a abrir com esta última informação – a política de tolerância zero contra todo o início de novos focos de acampamento de refugiados que o governo de Édouard Philippe preconizou e vêm executando desde a posse no verão francês que passou, transformou a cidade do norte da França em uma panela de pressão onde as refregas intra-étnicas são, muitas vezes, a única válvula de escape. 

Hubert Witwicki, na resposta que deu, procurava me explicar o que teria levado uma parte dos exilados, naquele dia, à protestar contra uma das voluntárias da ONG que ele também auxilia. Como na rixa de hoje, o que YAP viu em um dos pontos de distribuição corresponde às parcas informações que nos chegam via Internet. 

Corresponde ao que repórteres locais, com quem conversei, afirmam: a realidade da violência policial contra os migrantes é palpável mas de difícil demonstração. Por outro lado, a violência entre grupos vindos de diferentes cantos do globo pode eclodir à qualquer momento. Muitas vezes sem aparentes razões, outras tantas por desespero, desamparo ou por causa da angústia em que vivem este migrantes “jogados de um lado para o outro” sem nenhuma estabilidade. A ação premeditada de atravessadores também pode estar por trás destas disputas entre diferentes grupos de refugiados, utilizados como peões no tabuleiro da luta de poder entre diferentes intermediários do acesso clandestino à ilha da Rainha Elizabeth II.

Retorno à um dia movimentado de janeiro no enclave de Calais:

A política de dissuasão à presença de migrantes em Calais, escolhida e aplicada pela atual administração francesa, tem sido vista como exclusivamente repressiva e em contradição com as repetidas promessas de acolhida digna de refugiados e outros estrangeiros em exílio feitas por Emmanuel Macron desde que assumiu o comando da nação. O Jovem presidente da República Francesa defendeu, recentemente, em visita à esta cidade portuária, as forças policiais em ação na região ao mesmo tempo que renovou apoio à política de imigração conduzida pelo governo Édouard Philippe e ao projeto de reforma que tramita na Assembléia Nacional chamado Asilo-Imigração. Plano de legislação cuja elaboração esta à cargo do ministro do Interior Gérard Collomb – que, devido à condução  que faz das diretrizes do governo, se transformou em uma das figuras mais polêmicas entre os correligionários do chefe do Estado.

Neste meio tempo [entre a visita de Macron e o conflito da semana passada], um confronto entre as tropas de choque e refugiados, em um bairro afastado do centro da cidade, teria deixado feridos entre policiais e migrantes – em particular, desfigurando um menor de 16 anos que teve o olho amputado. Para o escritor e crítico titular em um dos programas de variedade de maior sucesso da TV Francesa, Yann Moix, este novo choque é apenas mais uma prova, entre outras, soberbas, de “atos criminosos contra os exilados”. É o que afirma o polemista profissional, em carta aberta ao presidente Macron, publicada no diário de centro-esquerda Libération,  em que ele o acusa, por “ignorância” ou por “cinismo”, de ser indigno da chefia do Estado.

A virulenta defesa da causa humanitária em favor do exilados do norte, gerou uma resposta no mesmo estilo, escrita pelo jornalista Julien Pouyet, do diário de Calais Nord Littoral, e também impressa nas colunas de libé. O repórter calaisiano critica a falta de nuance da carta-denúncia redigida por Moix. O escritor parisiense, que visitou calais no mesmo dia em que Macron esteve na região, diz ter “visto e filmado” a prova do crime perpetrado contra migrantes de parte das forças de polícia. Contudo, segundo Julien Pouyet, que o acompanhou em Calais, aos policias, Moix teria tido um discurso mais moderado.

Pouyet condena o “método” do crítico televisivo, que preferiu destacar a violência contra os migrantes e dar força a denúncia em detrimento de uma maior contextualização da complexa realidade deste enclave da imigração entre a França e o vizinho Reino Unido.

Esta contenda epistolar, além de ter agitado os debates midiáticos na França, confirma o mosaico de situações que YAP encontrou em Calais através dos depoimentos recolhidos entre os diversos atores locais envolvidos na gestão do fluxo atual de migrantes após o desmonte da antiga “Selva”.

No breu da manhã e de muitas incertezas

A cidade, apesar de desperta, se encontra mergulhada, ainda, nas penumbras herdadas da noite. Em um terreno baldio, longínquo, pequenos “cachos” de jovens homens surgem de ruas, becos e matas adjacentes. São migrantes que chegam para o desjejum oferecido por uma das ONGs que os assistem distribuindo o café da manhã a estes prisioneiros da clandestinidade imposta pelas leis européias e pelos acordos entre a França e a Inglaterra.

A minha presença é vista de longe, com desconfiança. por volta das nove horas, eu me aproximo de dois jovens, bem agasalhados. Para minha surpresa, diferente da maioria, eles são fluentes em francês – outros afegãos, como *Amim e *Muhad, bem como eritreus, etíopes, sírios, líbios ou sudaneses são, à quase 100 por cento, anglo-fônicos.

Eles me perguntam de onde eu sou e pedem para ver minhas credências. Convencidos da minha profissão, estes refugiados se apressam em me explicar o porquê de tamanha precaução: “as vezes, pela manhã, policias civis, à paisana, rodam a rua e exigem que nós lhes apresentemos os documentos”. Muhad, que se desculpa da tamanha desconfiança inicial, me mostra um protocolo emitido pela sucursal regional do ministério do Interior, o obrigando à partir sob pena de prisão e deportação forçada.

Ou seja, para ele, um encontro com as autoridades policiais pode representar um retorno forçado ao país natal de onde ele diz ter “escapado”. Amim e Muhad são irmão. Juntos, após cinco meses de viagem e dezenas de milhares de dólares gastos com atravessadores, estes dois afegãos, decididos à cruzar o canal da Mancha, desembarcaram no chamado Calaisis.

“Nos pensávamos que a França era a pátria dos direitos humanos, no entanto, nós estávamos enganados”, reclama Muhad. O mais loquaz da irmandade em trânsito não cessa de esclarecer que eles não são islamistas, não procuravam viver às custas de qualquer governo europeu que seja e que, eles também, bem como os cidadãos franceses, gostariam de viver em um país livre e democrático. Daí a incompreensão quanto a acolhida que dizem ter recebido em solo francês.

“Se nós estamos aqui é porquê corremos risco de morte no Afeganistão. Somos refugiados políticos. Isso porquê, nos dias de hoje, ou tu és um talibã ou uma vítima deste grupo.” explica Muhad. Os dois irmão, visivelmente, parecem pertencer à classe médio deste país ocupado por tropas norte-americanas desde os atentados às torres gêmeas do World Trade Center em setembro de 2011.

Contudo, à razão do aparente desengajamento político destes dois jovens bem instruídos é obscura – como costumas serem os papéis dos atores das sobras nas quais estão confinados migrantes, trabalhadores humanitários, voluntários, atravessadores e os policias que parecem combater, ou pelo menos atravancar, à todos os outros.

Os dois afegãos, assim que diversos outros estrangeiros desabrigados com quem a reportagem conversou neste inicio de janeiro gélido se queixam, como escreveu, em carta aberta ao locatário do Élysée, Yann Moix, de “devastação de abrigos, confisco de objetos pessoais, pulverização de sacos de dormir, entrave à ajuda humanitária”.

Aliás, a ONG Auberges des Migrants (AdM) de Calais, se servindo de uma tática concebida na Bélgica, imprimiu o distintivo da associação em todos os cobertores e barracas que distribuiu aos migrantes através de empréstimos formalizados por recibo assinados.

Esta astúcia permitiu à AdM fazer à prova da devastação – quase cotidiana segundo eles – deste tipo de artefato. O que, em seguida, abriu o caminho à uma queixa formal por roubo e destruição de bens junto à polícia de Calais. Se inquérito for aberto, ele será conduzido por agentes da mesma polícia que é vista como o suspeito número um do mal feito.

Um mesmo desejo, o mesmo desamparo, diferentes origens

Quinze minutos depois de começada, minha conversa com os jovens irmãos foi interrompida de forma brusca por um terceiro indivíduo, *Kaled, se declarando refugiado de origem etíope, e ainda mais articulado e franco-fônico que Amin e Muhad.

Ao me ver, este outro personagem ambíguo da lande austera de Calais não hesita em iniciar um interrogatório aparentemente de praxe nestas bandas. Relativamente aliviado de me acreditar jornalista e não policial, ele se dirige aos irmãos afegãos para confirmar a execução de um plano previamente concebido.

*Kaled me entera da greve de fome que pretendem iniciar contra a ONG Salam que se prepara para iniciar a fila do café da manhã. Rodado e versado em elementos de linguagem tipicamente utilizados pelas esquerdas radicais europeias, o líder aparente do motim alimentar se queixa do comportamento autoritário de Yolande, meu contato entre as ONGs e um pilar de Salam.

“Ela se comporta de maneira desrespeitosa. Nós estamos desamparados mais não somos bichos. Ela não pode nos tratar com tanta grosseria”, justifica Kaled.

Mais ao longe, em um espaço vago, outros jogam futebol em roda. Eles também tem queixas quanto ao tratamento que recebem da ONG. No entanto, eles não pretendem participar do protesto. O que não quer dizer que se sintam menos destratados. Por trás dos rostos sorridentes deste migrantes se esconde uma angústia permanente que, dependendo de como se passou a noite anterior, pode levar à atritos, mesmo com a mão que os alimentam.

Idiossincrasias 

Yolande, quando confrontada, parecia mais supresa do que a reportagem de YAP, único órgão de imprensa presente nesta manhã. Na fila que se formou em frente ao balcão montado pela ONG eram olhos ávidos e mãos de cobiça em corpos famintos que se viam. A imponente figura de Yolande, neste inicio de dia, tinham a ingrata missão de limitar a ração, nestas circunstâncias, sempre sentidas como diminutas pelos pacientes da caridade de Salam.

Por si só, dizer não à quem vive em condição famélica, faz repousar sobre estes voluntários um ar de antipatia. “É necessário que se dê limite ao que cada um recebe. [Buscar obter uma porção maior que a proposta à todos por Salam] Não é correto em relação aos outros”, se justifica a humanitária.

E, quando outro membro de Salam chama Kaled às falas o risco de um confronto físico inaudito entre trabalhadores sociais e os refugiados que eles buscam amparar parece premente. Nesta brecha, e como parte da turma do deixa disso, desliza uma assistente social integrante de entidade subsidiada pelo Estado e que costumava organizar a distribuição de refeições na antiga “Selva”. Ela, e outros, arrefecem os ânimos de todos e dispersa o princípio de rixa.

“Nós não viemos aqui [unicamente] para buscar pão e chá”, frisa Kaled, “nós estamos aqui para atravessar [o Canal da Mancha]”. Neste momento, a assistente social, que não quis se identificar, mas, que queria esclarecer a razão da animosidade que levou à greve de fome de certos exilado, irrompe e inicia o arrazoado: “aqui são homens viris que vêm de um outro continente.” Ela passa as tropas em revista. “A Africa, é a virilidade. o Afeganistão, o mesmo, o Egito, o mesmo, etc. É o homem que manda. Aqui, eles estão demasiadamente desvalidos, e jogados de um lado para o outro, sem nada para comer, sem poder tomar banho, sem nada”, descreve.

Este estado de desamparo, segundo a trabalhadora social, explicaria o potencial de conflito. “Não é por que eles precisam de ajuda que se pode mal tratá-los. E dependendo de como se passa a comunicação, esta gente se sente abalada no orgulho próprio” acredita saber a funcionaria. Kaled, mais calmo, parece concordar.

No fundo, segundo os revoltosos, tudo se resumiria a uma questão de idiossincrasias regionais e boas maneiras.

Quem é quem

Mas como se vê, a indefinição de papéis e de atores desta tragédia humana em atos infinitos faz com que a natureza das relações entre uns e outros seja opaca, instável e inflamável.

Durante o retorno ao centro da cidade, dentro do carro, eu pergunto do porquê de tamanha tensão à Hubert Witwicki, um executivo próximo da aposentadoria que, nos últimos dez anos, tem sido voluntário em diversas associações beneficientes de Calais. Mais especificamente, eu quiz saber se ele também tinha dúvidas sobre o status de refugiado de Kaled e de outros jovens mais exaltados com quem conversei durante a distribuição do café da manhã.

“Boa questão”, se exclama Witwicki. “Ele pode ser um atravessador, agente nunca sabe bem. Os líderes [de rixas e protestos contra ONGs] geralmente o são” crê o voluntário.

Mas as razões de conflitos, segundo o filantropo “nós encontramos raramente as verdadeiras razões, sabe? Ou é uma soma de razões. Quando eles se sentem pressionados, não precisa grande coisa para que a situação exploda. É muito sensível. Basta que eles tenham perdido tudo na noite anterior.”, conclui.

De volta à carta-resposta de Julien Pouyet, ele lembra que, no confronto entre as tropas de choque e os migrantes, às margens deste mesmo ponto de distribuição visitado por YAP, que “um migrante perdeu o olho, os policiais foram novamente lapidados, os membros de associações precisam que a situação se torna de difícil gestão com os migrantes manipulados por atravessadores”, resume.

Em vista da rixa desta tarde (1° de fevereiro) uma outra frase profética sobre o estado geral das relações surdas e cinzas estabelecidas entres os jogadores desta partida de pega-pega nos arrabaldes de Calais.

* Certos nomes de fontes foram alterados para proteger a identidade destes indivíduo.

* * Esta matéria poderá sofrer atualizações devido a fluidez da situação em Calais.

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