Como o longo período de duração do estado de urgência na França moldou a nova legislação antiterrorista de Macron
A França conta com um dos arsenais legislativos mas estritos da Europa na luta contra à criminalidade comum bem como em matéria antiterrorista. No entanto, diversos setores da sociedade tem alertado contra à política penal do Estado francês que, segundo juristas, ativistas em favor dos direitos humanos e políticos da oposição, iria únicamente no sentido de uma maior repressão em detrimento de garantias fundamentais que caracterizam o regime democrático.
Como o longo período de estado de urgência foi possível em um país como a França e como este regime jurídico exceptional preparou os espíritos para o que viria a ser votado no Parlamento em matéria penal?
Em janeiro de 2015, com a chacina que dizimou mais da metade da redação da revista satírica Charlie Hebdo, a França reencontrava o terrorismo de massa de décadas passadas. Os ataques da noite de 13 de novembro do mesmo ano e o atentado de Nice no verão de 2016 levaram os governos do período a manter o pais sob a vigência do estado de urgência e dos dispositivos de polícia administrativa que o caracterizam mas também à aprovar três leis polêmicas que deram mais poder aos agentes do Estado envolvidos na luta contra a ameaça terrorista.
O atual ministro do Interior Gérard Collomb, chefe das polícias no país, comemorou a promulgação da última destas três leis, chamada de “Reforço da Segurança Domestica e da Luta Antiterrorista”, aprovada pelo Parlamento em outubro. A nova legislação era um desejo do presidente da República Francesa Emmanuel Macron, que durante a campanha que culminou na vitória do jovem politico prometeu rigor na prevenção e na repressão do terrorismo.
No entanto, a escolha da transposição de medidas, antes, consideradas de exceção, na lei penal ordinária tem causado inquietude generalizada. A oposição de esquerda, por exemplo, votou contra a nova lei, na esteira de meses de críticas acerbas ao projeto de segurança do governo. Magistrados e juristas se alarmam da diminuição do controle judicial das ações de policia que a nova legislação inaugura e organismos nacionais e internacionais de defesa dos direitos humanos alertam a França para a ameaça às regras democráticas que o texto legal em vigor desde ontem (1° de novembro) representaria.
Como o governo dirigido pelo primeiro ministro Édouard Philippe chegou aqui? Como a França se dotou de mais uma lei rígida em matéria de segurança pública? Tão rígida que até mesmo o comissário para os Direitos Humanos da Comissão Europeias (CE), Nils Muiznieks, e o Alto Comissariado para os Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU) vem engrossando o coro dos opositores habituais ao extinto estado de urgência e à nova legislação prestes à vigorar. Retorno à um certo novembro passado:
O coração do Bairro da République, um torrão boêmio plantado entre a praça homônima e aquela da Bastilha, na noite do 13 de novembro de 2015 batia alegre e suavemente em consonância com a reputação festiva desta região de Paris.
“Como todas as noites, há uma multidão no Petit Cambodge e no Carillon, dois restaurantes alegres no coração dos bairros descolados do norte de Paris, à dois passos do canal Saint-Martin. Ainda se aproveitam da doçura do mês de novembro e das varandas aquecidas que permitem de beber e de fumar e ao mesmo tempo olhar os passantes. No fundo da sala do Carillon, uma dezena de residentes em medicina do hospital Saint-Louis, [localizado] à dois passos do estabelecimento, escutam música, aos goles de cerveja, após um dia exaustivo. Certos “habitués” do bairro voltaram para casa para assistir ao amistoso da seleção francesa [que se disputava] à 25 minutos de carro dali. No entanto, ainda há muita gente neste pequeno cruzamento conhecido pela animação durante todo o ano.
Subito, por volta das 21h15, conforme testemunha, “Ouvi-se barulhos semelhantes à explosivos, Muito forte. Até que nos dissemos conta de que se tratava de outra coisa, quando então, as pessoas começaram a se jogar ao chão”
Le Monde – 14 de novembro de 2015
Este são alguns dos primeiros parágrafos da matéria de capa do jornal Le Monde publicada na tarde que se seguiu aos ataques que fizeram tremer Paris e o município de Saint-Denis na periferia da capital francesa onde fica o estádio de France. O vespertino de referência do país, mais adiante no artigo, descrevia assim uma cena que se tornará incomum em um país que, até 2015, perdera o hábito de conviver com tamanha violência coletiva: Ao final do ataque às varandas dos bares parisienses escolhidos como alvo, podia se ver, escrevera o repórter do Le Monde, “sobre a calçada, corpos que jaziam sobre poças de sangue, mortos e sobreviventes misturados [uns ao outros]”.
Uma imagem conhecida de norte-americanos, aterrados, por década de assassinatos de massa, executados pelos mais diversos motivos, e que foram possíveis graças às mais de 600 milhões de armas de fogo em circulação naquele país. Mas não na Paris do século XXI, cujo o número de homicídios anual, há décadas, se conta em centenas à cada ano. Cifras que explodiram em 2015 no rastro dos episódios funestos que enlutaram os franceses.
Há época, face à uma opinião pública francesa sob o impacto dos ataques que deixam 130 mortos e mais de três centenas de feridos, o chefe do Estado de então, François Hollande, e o governo dirigido por Manuel Valls, justificaram a entrada em vigor do estado de urgência e as subsequentes renovações deste dispositivo legal restritivo pela necessidade de combater e previnir, de maneira eficaz e ágil, a ameaça terrorista que se abatera sobre a França. Uma ameaça em que as centenas de vítimas de Paris e de Saint-Denis seriam a demonstração da ressurgência.
O medo do impacto de um novo atentado, com resultados inexoravelmente macabros, sobre uma opinião pública já abalada, mais que os resultados pouco palpáveis produzidos pelas intervenções administrativas, prisões preventivas domiciliares ou ainda o fechamento extra-judicial de mesquitas, levou a uma espécie de estado de urgência permanente, que a nova legislação aprovada neste outono parisiense foi o preço pago pela extinção.
Criticado pela esquerda radical no Parlamento e, durante o período pré-eleitoral pelo então futuro candidato da “França não Submissa” Jean-luc Mélenchon, como liberticida, ameaça ao estado de direito e as instituições democráticas, a manutenção estado de urgência periclitava no inicio do verão de 2016. O presidente Hollande já havia anunciado a intenção de deixar caducar a lei que o prorrogara por uma quarta vez.
No entanto, na noite de 14 de Julho de 2016, em plena comemoração da queda da Bastilha, uma parte da orla azul de Nice foi ensangüentada pela ação de um terrorista solitário, à bordo de uma jamanta transformada em arma que percutiu repetidas vezes a multidão em júbilo e incauta, e que deixou mais de 80 mortos e centenas de feridos.
Ainda que a comissão em si deste atentado, menos de um ano depois da aplicação desta medida extraordinária, pudesse ter inspirado uma reflexão profunda sobre a utilidade do estado de urgência, foi o medo, de novo, que se impôs aos poderes estabelecidos da nação em luto. Nem o governo, nem a oposição de direita ousariam se opor à uma nova prorrogação deste regime especial quando exigida por um Hollande cauteloso.
E desde então, a ideia de retirar dos órgãos policiais a possibilidade de agir de forma expedita contra a ameaça que plana sobre a França parece um risco inaceitável para 80 por cento da classe política francesa que teme, mais que tudo, ser acusada de leniência por uma população colocada à rude prova por terroristas tanto determinados quanto imprevisíveis.
E ainda assim, as exigências do estado de direito, como em qualquer democracia, trouxe os dirigentes partidários, paulatinamente, à um novo consenso partilhado pelo atual chefe do Estado.
Em junho, em um discurso solene ao congresso que se reunira exceptionalmente em Versalhes, o récem eleito presidente da república confirmaria o que dissera e repetira durante a campanha presidencial, à saber, a intensão de por fim do estado de urgência já no outono. Contudo, Emmanuel Macron exigiu do parlamento uma nova lei, mais uma, que integrasse certos instrumentos coercitivos em uso desde a instauração do estado de urgência em uma espécie de transição gradual de uma ordem de exceção para uma ordem jurídica regulada pelo direito comum novamente reforçado pelo parlamento. Seria, terminou por ser, a nona lei em matéria de segurança pública elaborada pelo Parlamento francês em cinco anos.
Em regime acelerado, com tempo de debate restrito e de maneira marcial, Macron obteve satisfação de um congresso com pouco apetite para contrariar o Chefe do Estado no que diz respeito a luta contra o terrorismo. Muito embora o fato de que, ainda durante a discussão da lei que autorizou a sexta e última prorrogação do estado de urgência, as estatísticas não demonstravam um grande sucesso das medidas mais polêmicas.
O relator da legislação que reautorizou o regime de emergência por derradeiros três meses durante o verão passado, o deputado Macronista Didier Paris, lembrava que metade dos mais de 4500 atos de busca e apreensão administrativas executados até então contra pessoas suspeitas de “representar um risco contra a segurança e a ordem pública” se deram nos primeiros meses da entrada em vigor do estado de urgência. Já na segunda fase de aplicação deste estatuto especial, quando da segunda prorrogação, o número de “batidas” policias, dentro das prerrogativas da lei de emergência, diminuíram drasticamente.
O relator ainda reconheceu que, durante o período anterior àquele debate, entre agosto de 2016 e Junho de 2017, a cada mês que passou, esta e outras medidas administrativas foram preteridas em favor de uma retomada da via de inquéritos ordinários apoiados pelo direito comum em vigor e pelo código de processo penal – além dos oito textos legais em matéria de luta contra o terror, votados nos últimos cinco anos, e que endureceram o arsenal legislativo a disposição policia, da Procuradoria da República, dos tribunais e das vitimas, para investigar, julgar, punir e restituir o dano causado pelos terroristas.
Isso porque “os resultados são limitados em termos de abertura de instrução de processos penais. Trinta inquéritos por formação de quadrilha em associação com o terrorismo [durante o período do estado de urgência] foram levados à justiça pela Procuradoria de Paris” como conseqüência direta do atos de inquérito administrativo em vigor, constata o relator.
No entanto, Didier Paris justifica a recondução da medida pela necessidade do uso pontual dos instrumentos administrativos previstos na lei do estado de urgência. “Não se deve julgar os resultados únicamente pelo prisma das estatísticas. Mas pela capacidade de uso focado e parcimonioso que tem sido feito [das ações de busca e apreenção administrativa]”, pondera Paris.
A mesma lógica foi aplicada durante os debates que precederam a nova lei antiterrorista que entrou em vigor. E da mesma forma, como em cada uma das prorrogações do estado de urgência, a diminução do campo das garantias fundamentais foi o preço à pagar pela sensação de segurança exigida pelos eleitores.
Mas se aqueles que votam clamam ao governo por proteção, no cotidiano, a França é um país onde o cidadão estaria à mercê dos malfeitores? A violência hexagonal apresentaria níveis alarmantes?
Um índice – a evolução do número de homicídios voluntários cometidos no solo francês anualmente – ajuda a responder estas questões.
De acordo com dados fornecidos pela Polícia Militar Nacional, e que foram analisados pelo Observatório Nacional da Delinquência e da Resposta Penal (ONDRP), em 20 anos – de 1994 à 2014 – o crime de assassinato foi reduzido pela metade.
Estes dados eram conhecidos da classe política já em 2015. Mas na prática, o que os cerca de 650 homicídios anuais dizem da criminalidade atual?
De acordo com o criminologista do ONDPR Aurélien Langlade a queda acentuada do volume anual de homicídios na França demostra “que a sociedade francesa nunca conheceu um tal nível de pacificação”, analisa.
Mesmo em suas motivações, os homicídios cometidos no solo francês encontram razões ligadas, por um terço, à violência doméstica e, por outro terço, à guerra do tráfico de drogas. O que, segundo o pesquisador, induz a pensar que a política de segurça pública do país não expõe os cidadão à índices perigosos e insuportáveis de criminalidade cotidiana.
Entretanto, como lembra Laurence Blisson, secretaria geral do Sindicato da Magistratura, ouvida pela reportagem de YAP esta semana, “nós últimos anos, com execeção de um caso, toda nova lei penal se orienta no sentido de uma maior severidade e de uma diminuição das garantias fundamentais do cidadão”.
Segundo a julgadora, um discurso que proponha soluções penais diferentes do simples agravamento de penas, maior repressão e menor interferência judiciária “é inaudivel politicamente”, opina.
Aurélien Langlade abunda no sentido da análise que faz Blisson. O criminologista entende que a classe dirigente francesa “não tem uma cultura de avaliação dos resultados obtidos” por uma política penal em vigor como um pré-requisito da atividade legislativa em matéria criminal. Uma prática que levaria o Parlamento à agir sob o clamor suscitado pelos diferentes crimes trazidos às manchetes dos jornais e revistas.
Este comportamento, para Laurence Blisson, “é a vitória da ideologia da tolerância zero em matéria de lei penal”. Conforme a magistrada, esta corrente de pensamento se tornou majoritária, da esquerda à extrema direita, e, entre outras, permeou a decisão do governo de “contaminar o direto comum”, como sugere a jurista, com dispositivos legais que se aparentariam à medidas de exceção.
Durante o anúncio oficial, nesta terça-feira (30 de outubro), da promulgação da lei de “Reforço da Segurança Doméstica e da Luta Antiterrorista” e do fim da vigência do estado de urgência na França, o ministro do Interior Gérard Collomb informou a imprensa que, sob a égide da nova legislação, 44 pessoas permanecerão detidas sob o regime de prisão domiciliar, sem processo ou condenação, e onze mesquitas, ditas ultra-radicais, permanecerão fechadas pela administração. Até ordem do contrário.
Na semana que vem YAP retorna ao tema da segurança pública e da luta antiterrorista na França e das consequências da vigência do estado de urgência por quase dois anos.
Na próxima reportagem, o que dizem as estatísticas sobre a criminalidade na França e no mundo e quais seriam as melhores respostas penais à adotar.