Para Maud Chirio o bolsonarismo ideológico seria “um talibanismo religioso e um neoliberalismo de terra arrasada”
“A luta contra o fascismo se fará nas ruas”, afirma Glauber Severino que defendeu a criação de uma nova coalizão de esquerda ativista contra o avanço da extrema direita em breve no poder no Brasil
A Vitória de Jair Messias Bolsonaro do Partido Social Liberal (PSL) causou uma onda de choque, incompreensão e apreensão pelo mundo. Na França, devido ao seu apologismo assumido da ditadura Militar de 1964 à 1985, desde o inicio da campanha ele foi identificado como um candidato de Extrema Direita (ED), anti-democrático e cuja eleição potencial representaria um retrocesso político e social para o Brasil. Da esquerda à direita – política, editorial e intelectual – com raras exceções, a ascensão progressiva de Bolsonaro foi vista com temor e dúvida.
Aqui, até mesmo a ED populista de Marine Le Pen e de seu partido Rassemblement Nacional (RN) preferiu condenar o linguajar pouco convencional do futuro presidente da república brasileira, dando um passo para o lado ao memo tempo que diz respeitar a escolha soberana do eleitorado.
O fato é que Jair Bolsonaro preocupa. Com mais intensidade, os eleitores brasileiros que o denunciam desde o começo, que retuitaram #elenão, que foram eleitores de Luis Inácio Lula da Silva no passado e que se sentem próximos da esquerda, estes e outros franceses de mesma obediência democrática e esquerdizante, vivem mal a ressaca eleitoral.
A “cabeça inchada” causa também um senso de desorientação geral. Algo que ficou claro no encontro organizado pela associação “Outros Brasils” na Casa da America Latina de Paris nesta última quarta-feira (7 de novembro). Um debate animado entre Maud Chirio, Historiadora do Militarismo Brasileiro e o sociólogo brasileiro Glauber Severino, ambos professores e pesquisadores da Universidade Paris 8. A busca de explicações mas também de rumos para o combate – visto aqui como resistência – estava em todas as cabeças e na boca dos que se exprimiram.
Chiro, que tem sido vista com freqüência nas mídias francesas, europeias e até brasileiras, viu na Lava Jato uma peça pivo no movimento que levou à ED brasileira ao poder nacional. “A grande questão que se coloca para o Brasil, à partir de 2014, não é a de ED. (a questão) É a ofensiva política e judiciária contra o Partido dos Trabalhadores (PT)”.
Para a especialista da ditadura Militar Brasileira, “sobre um terreno de descontentamentos variados que se cristalizam em junho de 2013”, o cidadão começa a se inteirar do andamento de investigações abertas pelo Ministério Público federal (MPF) que buscam desbaratar esquemas de corrupção no seio da classe política. A operação mais célebre é a chamada “Lava Jato“, até a semana passada instruída em Curitiba, capital do Paraná, pelo juiz federal Sérgio Moro, futuro ministro da Justiça escolhido por Bolsonaro.
E justamente, para a historiadora, a famosa Lava Jato evolui e decide, em um determinado momento, de “mirar o PT em particular”. Uma visão majoritária deste inquérito entre os militantes petistas e que a ida de Moro para o futuro governo só reforçou.
Mas Maud Chiro vai mais longe e afirma que o “objetivo é claramente perceptível” desde o início. Segundo ela, o que estes juízes e promotores buscavam seria a demolição da classe política no poder e de seus aliados no mundo dos negócios. Algo que se fez, “ao preço de uma desaceleração da economia”. Tudo isso, conclui, “com objetivo de preparar uma troca de partidos no poder”.
“É por isso” continua Chirio, “que as investigações foram tão seletivas, afim de deixar ilesos certos nomes do campo conservador que estariam aptos à governar à curto prazo”.
Uma visão, não de um complô, mas de uma articulação político-judiciária aonde a luta contra a corrupção sistêmica teria sido instrumentalizada para favorecer uns e para minar outros.
A este concerto, em uma leitura típica das esquerdas, como lembra a acadêmica, se juntou a grande imprensa nacional que buscou reforçar a estratégia da oposição de criminalização quase exclusiva do Partido do Trabalhadores. Uma distorção da realidade sistêmica da corrupção no Brasil que encontraria esteio na grande exasperação das classes superiores da sociedade frustradas com anos de controle pela esquerda do Planalto.
União Sagrada à Extrema Direita
Mas, em paralelo, como defende Maud Chirio, à sobra do psicodrama político e midiático que se desenrola entre Curitiba e o Planalto Central, a ED se reconstituía abertamente, mas sem que a classe dirigente, em especial de esquerda, se apercebesse do risco que uma nova coalisão ultraconservadora poderia representar para um sistema político já em crise aguda.
Ela identifica na articulação entre o movimento anti-comunista Escola sem Partido, fundado nos anos dois mil, e nos setores ligados ao neopentecostalismo brasileiro, um fenômeno que teria ampliado uma certa visão na qual o inimigo comum seriam os marxistas no poder e responsáveis pela cátedra no Brasil. Uns viam no comunismo um adversário ideológico e outros viam nos mesmo um adversário espiritual.
O encontro destes dois conservadorismo, ambos “lutando contra um certo discurso pedagógico” visto como nefasto e anti-religioso, teria servido de catalizador de reativação política da ED marginalizada pela transição negociada entre regime Militar e os partidos políticos e concluída em 1985.
Ainda em paralelo, as manifestações de 2015/2016, teriam visto resurgir um combate contra o perigo comunista, tendo como alvo o PT – que não é um partido comunista. A historiadora francesa, cita mesmo o colega brasileiro Rodrigo Pato Sá Mota, que faz a mesma constatação, sem compreender o porquê. “Um sinal”, para ela, do desarmamento intelectual dos partidos tradicionais.
A natureza da transição para a democracia no Brasil – com uma lei de anistia que impediu que os criminosos do regime Militar fossem julgados e responsabilizados pela tortura e pelas execuções sumárias ocorridas no período – para Chirio dificultou e ainda dificulta o trabalho de memória dos Anos de Chumbo. Este apagamento dos atos nefastos praticados pelos agentes do regime ajudou à uma ressurgência, segundo a especialista, de um movimento que reivindica à volta da Ditadura.
Quatro movimento distintos mas radiais até então ultra minoritários e desarticulados se uniram aos poucos, conforme a crise da democracia brasileira se espalhava e se agudizava, e que ampliaram a audiência e penetração deste sistema de pensamento sem que, no entanto, os atores tradicionais da política pudesse estimar o potencial, inicialmente.
Rumo à Fascização do Brasil
Isto tudo, para ela, corresponderia à um sistema coerente de pensamento que, sem ser rapidamente percebido e combatido com maior vigor, acabou crescendo em audiência e chegando ao poder.
Um sistema que Maud Chirio se diz convencida de ser “fascizante”, apoiado sobre “um talibanismo religioso e um neoliberalismo de terra arrasada”, define.
Ela não diz que um totalitarismo se instalará no Brasil como uma fatalidade em decorrência da vitória de Jair Bolsonaro. Mas ela alerta para a coerência, radicalismo e características ultraconservadoras que são elementos constitutivos do pensamento totalitário e que estão presentes no discurso do que se passou a chamar de bolsonarismo.
Já Glauber Severino concorda com a avaliação da colega de Paris 8. A articulação entre diferentes fenômenos ultraconservadores que se desenvolviam de maneira paralela levou a formação de uma massa crítica suficientemente pesada para que a audiência de um sistema relativamente coerente de pensamento crescesse.
Papel das Religiões Protestantes
No entanto, ele pensa que a parcela do integralismo religioso foi decisiva na vitória relativamente tranquila do pesselista. Como prova, Severino lembra como Bolsonaro, até uma semana antes do primeiro turno, se mantinha à frente mas com um teto máximo de 30% das intenções de voto “até que as igrejas evangélica indicaram [o voto Bolsonaro]”, crê o sociólogo. E no espaço de uma semana, acrescenta, “O teto [ de intenções de voto] explode e passa de 30% à 46%”, recorda.
Este potencial de influência sobre a opinião pública Glauber Severino atribui ao abandono, pelo PT e pela esquerda em geral, da batalha de ideais nos bairros mais humildes do país. Ele explica que a preocupação com a política eleitoral, desde a vitória de Luis Inácio Lula da Silva, dominou entre as preocupações do principal partido da esquerda brasileira e deixou o campo livre para a penetração de uma ideologia ultraconservadora à serviço dos interesses mistos do neopentecostalismo brasileiro cujo exemplo mais bem sucedido e conhecido é o da Igreja Universal do Reino de Deus do controverso Bispo Edir Macedo.
Esta população propensa a votar no candidato do lulismo, por reconhecimento ao que viam como um progresso social trazido pelas medidas redistributiva dos governo de esquerda, como explica Severino, foram tomadas como cativas pelo petismo por muitos ano.
“Antes [da última semana que precedeu o pleito em primeiro turno] agente via bem que este voto [em Bolsonaro] era bem mais branco, classe abastada, e de centros urbanos e que, na última semana ele começou a se difundir na sociedade de forma mais abrangente”, estima.
“E não é por acaso”, acredita. “Mais ou menos uma semana antes [do primeiro turno] as igrejas evangélicas e neopentecostais chamaram o voto nele [Jair Bolsonaro].
Esta seqüência de campanha, para o professor de Paris 8, demostraria a perda de influência da esquerda secular e republicana, devido a ausência em espaços populares, e do domínio do integralismo religioso de instituições que visam tanto a evangelização da sociedade quanto o reforço das contas bancárias das igrejas evangélicas bem como da poupança de pastores e bispos.
O antidoto, segundo Severino, viria de um reinvestimento das ruas por militantes de diversos horizontes e por intelectuais para rearmar intelectualmente aqueles que já se opõe ao bolsonarismo e que estão preocupados com o radicalismo na nova equipe e com o que isso significa para o secularismo da sociedade, para a proteção dos direitos das minorias e para a democracia no Brasil.
Combate Prático
Para ele, a denuncia das tendências autoritárias e fascinantes do candidato da ED à qual os partidos e acadêmicos se dedicaram durante a campanha foi ineficaz. “O uso de termos abstratos (…) contando com o processo eleitoral e se dizendo ‘apesar de tudo, as pessoas não são loucas e nós poderemos convencer que [Bolsonaro se trata] de um candidato anti-democrático e fascista’ e nós vemos bem que isso não funcionou”, avalia.
“Temos que dizer: Não queremos mais ser mortos [pela polícia], nós não queremos nos submeter à violência social e econômica de um projeto ultra-liberal”.
Por isso, experiências de “resistência” recentes, fora do sistema tradicional dos partidos, para Glauber Severino, seriam a chave, pela esquerda, para recuperar o terreno perdido durante os anos PT no Planalto. Ele cita os movimentos feministas, com ênfase na luta das mulheres negras e faveladas, movimentos populares como o dos sem teto na Bahia, ou as Mães da Maré, no rio de Janeiro, etc…”
“Temos que dizer: Não queremos mais ser mortos [pela polícia], nós não queremos nos submeter à violência social e econômica de um projeto ultra-liberal”. Slogans, pensa o cientista social, que poderiam, como no exemplo da ascensão da ED no Brasil, ajudar a coordenar lutas e construir um contra-sistema de pensamento para reconquistar o voto das populações mais carentes “que nós perdemos”, constata.
No fundo ele pensa que uma oposição supra-partidária do tipo “Frente Democrática” não surtira o efeito desejado por que ela não reinventaria uma política alternativa que envolvesse o eleitor mais popular como um ator e não como um espectador ou um simples receptáculo de uma palavra institucional alheia ao cotidiano dos que seriam vítimas das políticas do futuro governo. Universidades populares, manifestações culturais e outras intervenções diretas, para Severino, deveriam ser preferidas pois são “experiências simples e concretas” de difusão de ideais que combatam a ED futuramente no poder. “Temos que construir juntos e ao lado” do eleitorado que partiu para o voto extremista, explica.
Uma batalha pelas consciências que ele compara à uma contra-revolução – um processo lento e árduo. “Nós temos face à nós um candidato [eleito] fascista, sustentado pelo que há de pior na sociedade brasileira (…) pastores evangélicos que coletam o dízimo em troca do céu, latifundiários (…) e que tem grande capacidade de se manter [no poder]”, opina. Severino.
“Houve uma renuncia da esquerda ao combate cultural”, pensa Maud Chirio. E que, ao mesmo tempo que os governos petistas se preocupavam em implementar projetos de melhoria da condição social de uma certa clientela hoje exposta ao pentecostalismo, uma parte da direita continuou pensando o combate político em termos culturais absolutos; Com um desejo assumido de conquistar corações e mentes na luta contra o comunismo. Uma visão política ancorado ainda à guerra fria, ao passo que a esquerda passou à olhar para o pós conflito entre leste e o oeste mundiais.
“No mundo, de um modo geral, a esquerda não soube se reinventar após a que da Muro. Efetivamente, de maneira global no ocidente, a esquerda não pode jamais, particularmente, verdadeiramente construir um projeto suficientemente legitimo e coerente para fazer dele um produto na batalha cultural.”, analisa. E isto teria levado as forças democráticas, em especial de esquerda, a se desarmarem face à uma militância conservadora que nunca renunciou a batalhar pelos valores iliberais que sempre portaram.
Além do mais, pensa a historiadora, as conquistas advindas das grandes revoluções liberais [de Independência Norte Americana, Revolução Francesa], como a igualdade de gênero, universalidade dos direito humanos, regras democrática, entre outras, eram vistas como inatacáveis. Um raciocínio que desarmou à esquerda ideologicamente, na opinião da pesquisadora. E justamente, a vitória do projeto em torno de Bolsonaro nos “mostra o quanto a esquerda ainda esta despreparada para livrar este combate”, admite Chirio.
Luta Interna e Radicalização
Outro aspecto histórico que foi abordado é o radicalismo do grupo que vai assumir as rédeas do país em janeiro próximo. Para a francesa, a chapa vencedora e seus acólitos disparates, mas igualmente radicais, formariam uma facção ainda mais extremista que a dos generais golpistas de 1964. É por isso [origem heteroclita dos aliados e ultra radicalismo ideológico de todos os componentes], salienta a estudiosa, que há um risco de perseguição e fechamento do regime.
O que ela alerta aqui é para o risco de uma concorrência interna que leve o ex-capitão encontra no inimigo comum – “os bandidos vermelhos”, por exemplo – um fator de reunificação das diversas correntes da ED brasileira que compõe o núcleo duro do Bolsonarismo. E, sem chamá-lo de nazista, ela cita o exemplo do 3° Reich, onde “o partido [Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães] estava em constate desacordo com a S.A. [Seção de Assalto] que ela estava em desacordo com a S.S.[Schutz Staffel ou Grupo de Proteção], e a consequência não foi a moderação do regime mas a guerra interna e a escalada repressiva contra inimigos que eram comuns para unir a população contra um bode expiatório”, ensina.
Isso não quer dizer que a ED brasileira tenha os mesmos inimigos e a mesmas intenções genocidas do regime dirigido por Adolf Hitler. Maud Chirio deixa claro. Contudo, este perigo de radicalização como forma de reunificar seus componentes é o que não permite a historiadora de afastar completamente o risco de uma nova ditadura no Brasil.
E posto que a possibilidade de uma fascização de uma parte do eleitorado, para os dois painelistas, não deixa dúvidas, Severino reitera que é pela construção de uma nova esquerda menos lulista e mais ativista que os terrenos perdidos à Extrema Direita poderão ser reconquistados.
“A luta contra o fascismo se fará nas ruas”, tem certeza o sociólogo.