Pelo menos um milhão de grevistas manifestaram hoje em toda a França contra a reforma das aposentadorias
A greve geral contra a reforma do regime de aposentadoria do país é vista como um sucesso dos organizadores da mobilização. Uma avaliação comum entre sindicalistas mas também expressa pelo primeiro ministro Édouard Philippe. A paralisia dos transportes públicos deve prosseguir, amanhã em toda França, e, pelo menos até segunda-feira na capital onde os metroviários decidiram cruzar os braços por mais 4 dias.
Nesta quinta-feira (5 de dezembro), a França avançou em marcha lenta. A greve geral preparada em comum acordo entre as principais centrais sindicais do país contra a reforma do regime de aposentadoria reuniu pelo menos um milhão de trabalhadores grevistas pelas ruas da Capital, Paris, e em centenas de cidades grandes, médias e pequenas, do interior francês.
De norte à sul, a temida greve dos transportes públicos trouxe transtornos mais ou menos severos de acordo com a região concernida. Em Paris, a greve dos ferroviários e dos metroviários teve um índice de adesão de cerca de 80% de participação deixando os parisienses praticamente à pé. Por exemplo, apenas as duas linhas automatizadas do metrô funcionaram normalmente.
Outras três funcionaram parcialmente, em horários de ponta, bem como um punhado de linhas de trens urbanos que circulam na região da Capital. Mas, tanto ônibus, quanto cerca de 70% das linhas do metrô de Paris deixaram de circular neste dia de greve geral apelidado pela imprensa local de “Quinta-Feira Negra”.
Como as dificuldades eram esperadas pelos habitantes da capital e região, os que puderam ou preferiram, exerceram o direito à folga remunerada e ficaram em casa. Outros tantos se organizaram de variadas maneiras – carona com colegas e vizinhos, bicicleta ou patinete eletrônico, motorista de aplicativo, etc… As bicicletas foram as rainhas das ruas em Paris desta “Quinta-Feira Negra”. A circulação, aliás, paradoxalmente, foi excelente – 4 vezes mais fluída que habitualmente de acordo com a Prefeitura de Polícia da capital (PPP). Uma explicação poderia ser encontrada no número elevado de parisienses que preferiram ficar em casa ou ir manifestar, liberando o trânsito da presença maciça de carros e motos.
A razão do sucesso da mobilização – reconhecido até mesmo pelo primeiro ministro Édouard Phillipe, no início da noite, quando a passeata Parisiense ainda se dirigia à praça da Nation – é a determinação dos diversos movimentos sociais e sindicais de derrubar a reforma do regime de aposentadoria em gestação pelo governo e desejada pelo presidente da República Emmanuel Macron.
Como em 1995, quando o governo de centro direita dirigido por Alain Juppé – mentor político do atual ocupante do palácio de Matignon – tentou uma reforma ampla do regime de pensões, os sindicatos de trabalhadores e estudantis apostam em uma greve longa, que bloqueie o país e a economia e force à mão dos dirigentes franceses e os faça retirar o projeto. pura e simplesmente. Tem 24 anos, além do projeto de lei, Juppé também foi sacrificado pelo então presidente da República Jacques Chirac – amigo íntimo do ex-premier e que faleceu recentemente após longo período de convalescência.
Como seu antecessor e mestre, Philippe, seguindo as orientações do presidente da República, diz que o principal objetivo é a criação de um sistema unificado de aposentadoria. Hoje, existem mais de 40 regimes especiais, cada um com uma caixa em separado do regime geral de aposentadoria. Estes regimes protegem de forma diferente e, em geral mais benéfica, certas categorias em função da periculosidade, insalubridade e dificuldade de tarefas ligadas à atividade destes trabalhadores. São estes regimes que serão atingidos de forma mais significativa pela reforma que busca extingui-los. No entanto, um novo sistema por pontos cotizados e generalizados deve alcançar todos os trabalhadores se a reforma chegar à termo e de acordo com os princípios escolhidos pelo chefe do Estado.
Os professores, ferroviários e metroviários ou ainda os policiais, tanto pelo número de funcionários que representam – mais de um milhão de professores da educação nacional, por exemplo – como pelo potencial de desorganização do quotidiano que uma greve prolongada destes setores acarretaria, são as categorias mais temidas pelo governo e pela maioria macronista na Assembléia Nacional (ALN).
Como tem mais de 20 anos, o sucesso geral do movimento depende da durabilidade da greve, em particular, dos ferroviários e metroviários – policiais civis têm direito de greve limitado e os policiais militares são proibidos de cruzar os braços. Uma França que viveria todos os dias, por três semanas, como em 1995, dias como o de hoje, poderia obrigar Édouard Philippe à desistir desta reforma que Emmanuel Macron, sem entrar em muitos detalhes, define como “uma medida de justiça”. O primeiro mandatário da nação francesa sustenta que o regime universal de aposentadoria se justifica porquê colocaria todos os franceses em um pé de igualdade. Uma noção que contestam os sindicatos e trabalhadores dos trilhos, da cátedra e da ordem.
O potencial de distúrbio – e de derrota – não passou despercebido e as precauções retóricas do primeiro ministro, neste sentido, são notáveis. No entanto, ainda que se dizendo aberto ao diálogo, por enquanto, Philippe, após elogiar a boa condução geral das passeatas pelos sindicatos, em uma jornada de greve que para ele viu “muitas manifestações por toda a França” também demonstrou uma determinação inversa à dos grevistas: De levar até o fim a reforma tão detestada. Prova é que ele manteve o calendário legislativo que prevê uma votação no Congresso para o verão europeu de 2020, mas também revelou que ele pretende apresentar o projeto ao Conselho de Ministros na quarta-feira que vem. O que poderá por mais fogo na lenha social – tudo, que pelo verbo, o premier tenta evitar.
Até lá, os ferroviários da SNCF – empresa pública de trens – e os metroviários da RATP (metrô de Paris) anunciam uma recondução da paralisação, pelo menos até segunda-feira, no que tange à Capital, e para amanhã, no que diz respeito aos trilhos nacionais. Por enquanto, dizem os sindicalistas, que comemoram o sucesso da mobilização de hoje, a pressão deve continuar em busca do graal supremo que para eles é a renúncia da reforma pelo governo.
Contra a Reforma
Emmanuel Macron, no dia 3 de outubro, na cidade de Rodez, em evento organizado pela Presidência da República francesa para discutir e defender a reforma da aposentaria, confessou não “adorar” a palavra “penibilidade (termo jurídico equivalente à “insalubridade” em direito do trabalho brasileiro e que deriva da palavra penível – que causa pena, sofrimento, dor). Ele explicou à audiência que o termo “daria o sentimento de que o trabalho seria [algo] penível.
Macron, conhecido por suas frases ditas de improviso e vistas por muitos como insensíveis à realidade dos franceses modestos, mais uma vez, teve uma de suas opiniões publicamente exprimidas repudiada por bom número dos seus concidadãos. Como o jovem “cheminot” da SNCF, Nicolas, de 23 anos, que trabalha na direção do trafico ferroviário na cidade de Étampes, na região parisiense. Como outros colegas ferroviários, ele se diz determinado a prosseguir a greve “até o fim”.
Quando membros do governo acusam a categoria à que ele pertence de ser privilegiada por um regime que os permite de se aposentar mais cedo que a média dos trabalhadores, ou que os da vantagens em espécie, como trajetos TGV gratuitos, ou ainda, quando o presidente da República sugere que o trabalho em si não seria “penível”, Nicolas se diz revoltado. “Eu trabalho sete dias na semana, em horários difįceis, por turnos. Tenho poucos finais de semana em um ano e Macron diz que o que eu faço não é penível”, se exclama. Ele também acusa a imprensa nacional francesa de difundir uma imagem destorcida da realidade dos ferroviários. “Nós temos sim algumas vantagens”, admite. No entanto, continua Nicolas, “não ganho mais de 3 mil euros por mês. Nem mesmo 2 mil por mês. Não conheço nem um colega nos trilhos que ganhe tanto assim.”, esclarece.
“É, claro que podemos viajar de graça [fora trajetos TGV limitados à 8 por ano]. É claro que nos aposentamos mais cedo. Mas isso é apenas uma compensação por uma atividade dura e penível”, afirma. Mas para o jovem trabalhador, não somente o governo os visa de maneira injusta, mas, principalmente, assim fazendo, desvia à atenção da população do que ele qualifica de verdadeiras desigualdades sociais em termos de aposentadoria. “Quando eu vejo que há pessoas que chegam ao final da carreira com pensões miseráveis, isto me enoja, simplesmente. Ao invés de procurar reformar os regimes especais, o governo deveria se preocupar [com a melhora] das condições dos mais pobres”, crava Nicolas.
Outra categoria determinada à agir nas ruas contra a reforma planejada pelo governo Philippe é a do magistério nacional. Instituição de grande simbologia republicana na França, a Educação Nacional vive em clima de mal-estar permanente, tem mais de uma década. Vale dizer, que para lá da questão lancinante da reforma em discussão, a falta de recursos didáticos e matérias em um quotidiano de dificuldades ligadas aumento do número de alunos por classe, do empobrecimento da categoria e, mais recentemente, a chegada ao ministério da Educação Nacional de Jean-Michel Blanquer, ministro visto como autoritário e hostil aos funcionários e professores, formam um conjunto de fatores que causam um desgosto geral que se sente em cada conversa com estes formadores.
Seria a reforma a gota d’água? Antonella, professora por volta dos cinquenta anos de idade que ensina em uma escola primária de Paris, de forma didática, explica a rejeição do projeto governamental assim: “os professores do primário, na França, de um modo geral são mal pagos. As suas pensões são calculadas, atualmente, sobre 75% da média dos últimos seis meses de salário. Logo, no final da carreira, quando nós ganhamos um pouco mais de dinheiro.” A educadora continua: “O governo quer mudar tudo, e calcular a pensão sobre o conjunto da carreira. No entanto, nós começamos a carreira [com remunerações] muito baixas. E logo, nós vamos perder muito.”, conclui.
Uma forma de atenuar esta perda, seria a revalorização significativa dos salários iniciais na Educação Nacional. Ciente disso, esta semana, o ministro Blanquer afirmou que, durante a fase de transição entre o regime especial da carreira e o regime universal defendido pelo governo, ele estaria autorizado à fazer exatamente isso. No entanto, como Antonella, os professores grevistas desta quinta-feira, não acreditam na promessa ministerial. “Faz 30 anos que [os governos sucessivos] nos prometem a revalorização dos salários do primário. Logo… Ficaremos aguardando”, encerra, enigmática, a educadora.
A lógica global da reforma – regime universal acompanhado de um sistema de pontos e integralmente pilotado pelo governo e não mais pelas caixas de funcionários e trabalhadores submetidos aos atuais regimes especiais e geral – é o que mais inquiéta os sindicatos e os grevistas que a reportagem de YAPMAG cruzou nesta tarde de 0°C graus e neblina espessa no leste de Paris. O que se argumenta é que o custo do ponto poderá variar ao longo do tempo e de acordo com o desejo da maioria parlamentar do momento. O que ameaçaria a perenidade dos valores máximos e mínimos das pensões – posto que o cálculo poderia ser reformado com o tempo exigindo uma cotização maior para obter uma pensão igual ou menor que a prevista inicialmente quando a possível entrada em vigor de tal reforma. A idade minima para obter o direito à uma pensão completa é outro ponto que está novamente em jogo. Como de resto, também neste ponto, o governo não tem sido franco quando aos que preconiza.
Black Blocs
Mais de 100 cidades, além da Capital, conheceram uma mobilização considerada “de massa” pela imprensa nacional, sindicatos e pelo próprio governo. Ao todo, foram pelo menos 1 milhão de grevistas mobilizados. Em Paris, onde 65 mil desfilaram, o cortejo se viu imobilizado por mais de duas horas devido ao afrontamento entre as tropas da CRS (Choque francesa) e cerca de uma centena de militantes anti-capitalistas radicais conhecidos como Black Blocs. O conflito se deu nos entornos da praça da République – metade do percurso oficial que começou na estação ferroviária Gare du Nord com destino à praça da Nation no leste da cidade – os manifestantes foram contidos pela policias até que a situação recobrasse a calma. A Prefeitura de Policia de Paris informou, no inicio da noite, ter detido 87 pessoas e o Ministério Público fez saber que 71 prisões preventivas com ligação com os incidentes da République teriam sido decretadas na Capital.
Adesão
A adesão à greve geral de hoje concerniu diversas categorias do setor público mas também, em bem menor proporção, trabalhadores de grandes empresas do setor privado. Na Educação Nacional, de acordo com fontes oficial, 51% dos professores teriam deixado as salas de aula vazias. O principais sindicatos da categoria falaram e metade das escolhas fechadas pelo país e de um indice de adesão de pelo menos 70%. Nos transportes foi grande a participação com até 90% de funcionários escolhendo cruzar os braço – indice podendo ser maior ou menor de acordo com a região. Outros setores – energia elétrica, refino de petróleo, gaz, aviação, super mercados etc… – tiveram indices de adesão entre 20% à 50%.
As direções da RATP e da SNCF declararam que, devido à recondução do movimento social para amanhã e além, a sexta-feira do parisiense não deve ter nenhuma melhora. A situação da Educação Nacional e mais incerta, mas, pelo menos nas ruas, os professores se declaravam mais determinados do que nunca à derrotar o projeto de reforma e, por consequência, reconduzir a paralisação.
Hoje (5 de dezembro) à noite, como na noite de 17 de Novembro de 2018 – data da eclosão do movimento dos Coletes Amarelos (CAs) que desfilaram junto com os demais grevistas nesta quinta-feira – não se sabe como a mobilização tomará forma nos próximos dias e semanas. Mas se tem algo que o surgimento do movimento dos CAs demonstrou é que, em tempos de inquietude social, um dia de protesto pode ser apenas um dia de protesto, ou não. E saber apreciar o potencial e a durabilidade de uma mobilização se tornou um exercício de adivinhação bem mais que de ciência.
Esta reportagem foi editado. Esta é a última versão. Outras revisões, se vierem a acontecer serão assinaladas.
De Paris DF